Governo federal aponta irregularidades em 922 convênios com estados, municípios e ONGs

Transações ultrapassam R$ 836 milhões, dos quais R$ 594 milhões foram efetivamente liberados

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Mais de 900 contratos e convênios firmados pela União com municípios, estados e organizações não governamentais (ONGs) nos últimos dez anos tiveram as prestações de contas rejeitadas pelos próprios ministérios que repassaram as verbas. Essas transações ultrapassam R$ 836 milhões, dos quais R$ 594 milhões foram efetivamente liberados. A rejeição gera a abertura de um processo chamado de Tomada de Contas Especial, que tem o objetivo de identificar os responsáveis pelo prejuízo e recuperar os recursos para os cofres do governo federal.
As informações estão disponíveis em um site lançado pelo Ministério do Planejamento, o Painel Transferências Abertas, que reúne dados sobre 114 mil contratos, convênios e termos de parceria assinados desde 2008. A ferramenta é atualizada todos os dias. Levantamento feito pelo GLOBO na última sexta-feira constatou que eram 922 os contratos e convênios que tiveram as prestações de contas rejeitadas. Quase a metade, 425, era do Ministério do Turismo. A pasta também lidera em relação aos valores dos contratos, que somam R$ 226,9 milhões (27% do total). Na sequência, aparecem as pastas de Desenvolvimento, Indústria e Comércio, com R$ 117,6 milhões; Defesa (R$ 86 milhões); Desenvolvimento Social (R$ 53,2 milhões); e Trabalho (R$ 51,2 milhões).
Como os processos são lentos, a maior parte dos acordos com prestação de contas rejeitadas é de 2009 (395) e 2010 (299). A maioria foi celebrada com prefeituras: 588. Outros 283 foram assinados com organizações da sociedade civil, restando ainda 46 com governos estaduais e cinco com empresas públicas. Por estado, o maior valor é do Amazonas, R$ 153,6 milhões. Na sequência, vêm São Paulo, R$ 83,5 milhões; Pernambuco, R$ 53,8 milhões; Bahia, R$ 46,9 milhões; e Distrito Federal, R$ 39,7 milhões.

O Amazonas lidera devido a um convênio de R$ 107 milhões firmado com o governo estadual para obras de acesso à Zona Franca de Manaus em 2012. Pareceres técnicos do Executivo e do Ministério Público Federal (MPF) apontaram que a revitalização das áreas já construídas não seria suficiente, além do fato de um termo aditivo ao contrato ter aumentado alguns dos preços unitários acima dos 25% previstos em lei. Na própria prestação de contas, o governo do Amazonas se queixou de que a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), órgão ligado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, teria sido “ausente” durante a execução do contrato. O convênio acabou rescindido em 2015.
Além do caso do Amazonas, aparecem no topo da lista um convênio de 2009 do Ministério do Turismo para a construção de um túnel no Recife, obra do governo de Pernambuco, no valor de R$ 50 milhões; uma parceria da pasta do Trabalho com uma ONG de São Paulo, de 2008, para instalação de centros de atendimento ao trabalhador, no valor de R$ 37,7 milhões; um convênio de 2009 da área de Desenvolvimento Agrário com uma estatal baiana para assistência técnica a agricultores familiares no interior da Bahia, ao custo de R$ 27,6 milhões; e um programa de 2012, de R$ 23,1 milhões, para construção de cisternas pelo governo do Espírito Santo em parceria com a pasta do Desenvolvimento Social.

O diretor de auditoria de governança e gestão do Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU), Marcos Rezende, observa que parte das rejeições decorre de problemas de gestão e da própria prestação de contas.
— Nem tudo é corrupção. Há situações em que muda o prefeito, muda a gestão. E ainda temos municípios com dificuldades de prestação de contas, de dar informações, devido à carência nessa área de gestão. Temos preocupação com qualquer desvio de recurso público — afirma. — Nesse caso, o percentual até não é tão alto, nem mesmo a quantidade de recursos. Mas é sempre preciso adequar os controles para reduzir a probabilidade de esses problemas acontecerem.
DEMORA NA EXECUÇÃO DOS CONTRATOS
Rezende ressalta que a lentidão na execução dos contratos e convênios e no envio e na análise de prestações de contas é outro problema a ser enfrentado. Ele conta que uma auditoria em andamento na CGU aponta um tempo médio de cinco anos para a execução, o que seria um prazo muito longo, já que na maioria dos casos os valores não são tão altos.
— O que nos preocupa bastante, além da quantidade de rejeições, é a questão do tempo que tem levado para esses contratos serem finalizados. É muito alto. Em geral, são instrumentos de baixo valor; em torno de 80% deles são abaixo de R$ 750 mil. O tempo de execução deveria ser menor, e há um problema de envio e análise de prestação de contas, que gera um estoque muito elevado e crescente. Os ministérios têm dificuldade de analisar as prestações de contas em tempo hábil, perdendo a oportunidade de identificar mais prontamente os problemas — destaca.
Responsável pelo maior volume de prestação de contas rejeitadas, a pasta do Turismo foi alvo, em 2011, da Operação Voucher — que apurava desvios em contratos — e afirma ter tomado “medidas rígidas” desde então. O ministério observa que quase todos os contratos nessa situação foram celebrados até 2011.
“Desde então, o Ministério do Turismo adotou medidas mais rígidas em relação à aprovação das propostas, acompanhamento e fiscalização dos objetos. Em função dessas mudanças, o próprio Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União reconheceram o esforço do Ministério do Turismo em melhorar o processo de celebração e prestação de contas dos contratos de repasse e convênios”, afirma a pasta, ressaltando ter recebido prêmios pelo seu trabalho recente na área.

O ministério acrescenta que parte dos valores investidos já foi recuperada pela União. E destaca que houve um “reforço da equipe” que faz a análise da prestação de contas, além do estabelecimento de metas para a área. “Como exemplo, somente nos nove primeiros meses de 2017 foram realizadas mais de mil análises de prestação de contas, número 21% maior do que todas as prestações realizadas em 2016”, ressalta o ministério.

O governo do Espírito Santo afirmou que o convênio para construção de cisternas foi firmado na gestão anterior e que a empresa contratada para a prestação de serviços teve as contas rejeitadas pelo órgão estadual. Ressaltou que cobra a empresa na Justiça e que já houve devolução à União de parte dos recursos repassados. “A Agência de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas e do Empreendedorismo esclarece que não foi firmado novo convênio com o mesmo objeto e com a mesma entidade e que o Governo do Estado tem intensificado o controle interno de seus contratos por meio de auditorias, monitoramentos e inspeções, entre outras ações promovidas pela Secretaria de Estado de Controle e Transparência”, diz ainda a nota.
Os governos do Amazonas e de Pernambuco não responderam aos questionamentos. A ONG paulistana que fechou contrato com o Ministério do Trabalho não foi localizada, e a estatal baiana que firmou contrato com o Ministério do Desenvolvimento Agrário não existe mais.